terça-feira, 14 de dezembro de 2010

TODAS AS VIDAS
(Cora Coralina)

Vive dentro de mim 
uma cabocla velha 
de mau-olhado, 
acocorada ao pé do borralho, 
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço... 
Ogum. Orixá. 
Macumba, terreiro. 
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho. 
Seu cheiro gostoso 
d'água e sabão. 
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa, 
pedra de anil.
Sua coroa verde de São-caetano.

Vive dentro de mim 
a mulher cozinheira. 
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro. 
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco. 
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim 
a mulher do povo. 
Bem proletária. 
Bem linguaruda, 
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha, 
e filharada. 

Vive dentro de mim
a mulher roceira. 
- Enxerto de terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira. 
Madrugadeira. 
Analfabeta. 
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos, 
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida. 
Minha irmãzinha... 
tão desprezada, 
tão murmurada...
Fingindo ser alegre seu triste fado. 

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida - 
a vida mera das obscuras!

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