quarta-feira, 24 de novembro de 2010

[GRANDES SÃO OS DESERTOS...]

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.  
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto  
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.  
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes  
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,  
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 

Grandes são os desertos, minha alma!  
Grandes são os desertos. 

Não tirei bilhete para a vida,  
Errei a porta do sentimento,  
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.  
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,  
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,  
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)  
Senão saber isto:  
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.  
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar  
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)  
Acendo o cigarro para adiar a viagem,  
Para adiar todas as viagens.  
Para adiar o universo inteiro. 

Volta amanhã, realidade!  
Basta por hoje, gentes!  
Adia-te, presente absoluto!  
Mais vale não ser que ser assim. 

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,  
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 

Mas tenho que arrumar mala,  
Tenho por força que arrumar a mala,  
A mala. 

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.  
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.  
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,  
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 

Tenho que arrumar a mala de ser.  
Tenho que existir a arrumar malas.  
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.  
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.  
Sei só que tenho que arrumar a mala,  
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,  
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 

Ergo-me de repente todos os Césares.    
Vou definitivamente arrumar a mala.    
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;   
Hei de vê-la levar de aqui,  
Hei de existir independentemente dela. 

Grandes são os desertos e tudo é deserto,  
Salvo erro, naturalmente.  
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 

Mais vale arrumar a mala.  
Fim.

Álvaro de Campos

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Que boa escolha... que tem tanto a dizer, mas eu fico com: "Amanhã é infinito"!

    Bsos

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